Introdução
Pois é... Pensando num título para esse texto, o que escrever, o que relatar, cheguei a essa conclusão: praticamente inexplicável. O que irei (tentar) descrever a partir de agora está diretamente relacionado com a experiência única que tive de ser um dos membros do Uta Matsuri daqui da Sede Central da Oomoto.
Como já relatei anteriormente, quando cheguei ao Japão, nem sabia direito o que é o Uta Matsuri (e talvez eu ainda não saiba), mas graças aos incríveis instrutores que tive aqui e aos estudos dos quais participei, consegui ter uma pequena idéia, uma pequena noção, dessa grandiosa cerimônia. Porém, não sonhava nem sequer passava pela minha mente em ser um dos membros do Uta Matsuri, menos ainda como um cantor.
Poucos dias antes de embarcar para a Mongólia, um dos responsáveis pela organização da cerimônia me convidou para ser um dos cantores. Foi um choque! “Meu Deus, nem cantar no eu sei! Devo ter entendido errado...” – pensava comigo, mas não: pouco tempo depois veio um dos professores para confirmar a minha participação.
O que não sabia, até então, era que a própria Guia Espiritual da Oomoto é quem autoriza ou não os membros para essa cerimônia. Ou seja, aquela confirmação não foi um ato meramente isolado e individual, porque na verdade, tanto o nome dele quanto o meu e dos demais membros iriam para a Guia Espiritual.
Fui para Mongólia tentando entender tudo isso, mentalmente me preparando para os treinos e tentando saber um pouco mais do Uta Matsuri.
Treinos... Que dor!
Os treinos... bem, os treinos formam uma história à parte. Foram mais de 60 dias treinando quase todos os dias, cerca de uma hora por dia. Eles se intensificaram com a proximidade do Uta Matsuri, pois chegávamos a treinar quase duas horas e meia por dia, sempre ajoelhados!
Treinávamos do lado de fora do Templo Banshoo-den, onde há corredores de madeira. Ficávamos lá ajoelhados direto no assoalho, sem qualquer tipo de acolchoado. Falar que doía é óbvio demais.
Principalmente nos primeiros treinos, eu tentava criar mecanismos na minha mente para suportar a dor. Não doía simplesmente, queimava, ardia. Parecia que a rótula sairia a qualquer momento da perna.
Se fosse só para ficar sentado, ajoelhado e suportando a dor, é uma coisa. Mas tínhamos que fazer tudo isso e ainda por cima cantar, como se nada nos abalasse.
Quando os treinos terminavam, não conseguia saber se isso era bom ou ruim, pois como o corpo havia se acostumado com aquela posição, qualquer pequeno e singelo movimento fazia a dor se intensificar terrivelmente.
Queimava! Ardia! Ficávamos quase cinco minutos tentando nos mexer, um brincando com a cara do outro.
O que me ajudava muito nos treinos (além do bom humor de todos os membros) era o vento que batia no meu rosto. Como estávamos em pleno verão aqui em Kameoka (quente e muito úmido), todo o vento que batia no corpo era sempre bem-vindo, como um grande presente de Deus.
Uta
Para os treinos de Roei, o canto propriamente dito, usávamos os tanka1 do ano anterior, somente para termos a noção de como soltar a voz, onde elevá-la, onde diminuir o tom, o ritmo etc.
Porém, no dia da apresentação oficial, obviamente teríamos que cantar os tanka compostos pelos oomotanos para aquele ano. Pelo rigoroso processo de seleção dos poemas, há sempre uma demora na definição deles, uma vez que o julgamento final e a escolha são realizados pela própria Guia Espiritual.
Para um brasileiro como eu, a primeira dificuldade, sem sombra de dúvidas (depois da dor), é a língua. Nos treinos tive grande dificuldade para ler o japonês. Graças à ajuda de todos os membros, passei todos os cantos para letras romanas, facilitando na hora de cantar.
Consciente dessa minha dificuldade, e de certa forma preocupado, perguntei quando os poemas eram geralmente divulgados. A resposta foi assustadora: “No ano passado, o livro foi passado p’ra gente uma semana antes”. Uma semana antes?!
Mas nesse ano, milagrosamente (de acordo com os professores) os cantos foram escolhidos mais rapidamente. Nesse dia, indo para o treino, o Suzuki-san, um dos professores, estava com todos os cantos nas mãos, vibrando muito. Ele virou para mim e disse: “Takeshi! Parabéns! Seu poema foi escolhido!”.
“Meu poema? Escolhido? Como assim?! Calma...”, tentava processar as informações, mas simplesmente não acreditava no que ele dizia. Incrédulo, peguei a folha que ele estava segurando e vi o meu nome. Foi uma avalanche de emoções!
Agradecia às felicitações de todos, estava muito feliz com a notícia, quando então ouvi alguém dizer: “Parabéns! Você vai cantar seu próprio uta!”.
“Hein?!”, um frio, um arrepio percorreu pela minha espinha. Não sabia o que sentir, nem consigo explicar. Mas sei que foi o impulso suficiente para treinar mais e mais.
Ensaio – Croc! “Meu Deus! E agora?”
Depois de tantos treinos, de receber todas as músicas que iríamos cantar, chegou o dia em que faríamos o ensaio geral, um dia antes da apresentação oficial. Esse ensaio é uma pré-apresentação. Nada seria corrigido durante o treino, nada seria dito, apenas agiríamos como se estivéssemos na apresentação oficial.
Nesse ensaio, estava muito emocionado, parecia mesmo a própria apresentação, com a mesma duração, com o mesmo tempo, os mesmos movimentos, mas sem a platéia.
Mesmo depois de tantos treinos, ainda não havia me acostumado em ficar ajoelhado durante tanto tempo. Meu corpo tremia e suava de tanta dor, a cada segundo que se passava ficava mais difícil permanecer na mesma posição. Nunca senti nada parecido.
No final do ensaio, depois do nosso último movimento conjunto, antes de sairmos do palco, meu pé direito, num movimento totalmente involuntário, escorregou para baixo do meu corpo e só escutei um barulho: croc.
Como minhas pernas estavam todas adormecidas, não senti nada, mas pelo barulho sabia que boa coisa não era.
Eis que chegou a hora de ir embora.
No momento em que tentei me levantar, mesmo adormecidas, minhas pernas respondiam ao meu comando. Com um pouco de dificuldade, consegui me levantar, mas meu pé direito, durante certo tempo, não se movia. Fui literalmente arrastando o pé que parecia não ser meu.
Conforme o sangue circulava pelas pernas, as dores se intensificaram e já fora do palco, sentei e quase chorei de tanta dor.
Um dos professores, Hashimoto-san, vendo-me sentando, me perguntou se estava tudo bem. Tentei descrever o que aconteceu e a feição dele mudou completamente. Ficou mudo, sério. E eu, com medo. Muito medo.
Troquei-me e voltei para o quarto, tomei um analgésico, passei pomada analgésica no pé e colei uma espécie de bandagem com a essência do Otsuchi-san, uma terra que na Oomoto possui grande propriedade de cicatrização.
Graças a Deus, a dor foi logo aliviada, conseguia andar normalmente. Mas ajoelhar, nem pensar. Seguindo a orientação do professor, nas próximas 24 horas nada de ajoelhar. Simplesmente rezava para que o melhor acontecesse.
59º Oomoto Uta Matsuri
Chegou o dia. Mais que isso, chegou a hora.
Sem perceber, eu já estava trocado, indo para o corredor por onde entraríamos para o palco, para me concentrar. Mesmo sem dores, estava ainda muito preocupado com o meu pé. E quando cheguei ao corredor, Hashimoto-san foi logo me perguntando: “Qual foi o pé que você machucou ontem?”.
Mostrei o pé e no mesmo instante ele fez uma purificação com o kiribi, purificação por meio do fogo, que consiste em atritar um metal na pedra produzindo faíscas, e logo em seguida eu só ouvi: “Pronto! Vamos.”.
Instantes depois, ouvi a primeira nota da flauta. Era a hora. Estávamos todos perfilados, entrando no palco de No2 do Templo Banshoo-den. Começou o Uta Matsuri.
Percorremos todo o trajeto, sentamos nos nossos lugares. Bem à nossa frente, fora do palco, estava a Quinta Guia Espiritual da Oomoto, com um semblante majestoso, serena, e mesmo no escuro, ela brilhava.
Logo em seguida, depois dos oficiantes entrarem e as dançarinas realizarem o primeiro número, ouço a voz do Suzuki-san dizer em alto e bom som: “Dai gojyuu kyuu kai Oomoto Uta Matsuri (...) Senja! Deguchi Kurenai!”. (trad.: “59º Oomoto Uta Matsuri [...] Juíza, avaliadora, julgadora dos poemas, Kurenai Deguchi!”).
É esse o momento em que são ditos quantos poemas foram recebidos, quantos foram avaliados e por quem, no caso, pela própria Guia Espiritual da Oomoto. Eu me emocionava ao ouvir essas frases e meus olhos se enchiam de lágrimas. Sentia meu corpo arrepiado, tomado por uma energia incrível.
Depois disso, não me lembro de mais nada.
Um branco total na memória! Não lembro os poemas que cantei, nem me lembro de ter cantado meu próprio poema. Só me lembro de ver as dançarinas entrando mais uma vez no palco, para o último número.
Saímos em seguida. Durante o percurso todo, tentava me lembrar de algo, o que tinha acontecido, qualquer coisa, mas nada. Lembrei da minha perna, do meu pé, e por um milagre, senti dores apenas fora do palco quando quase caí, com as pernas formigando e não me obedecendo. Sentei. Todos os membros se agradeciam e se elogiavam mutuamente.
Como todos sabiam o que tinha acontecido comigo no ensaio, logo perguntaram como estava o meu pé. Respondi-lhes que estava ótimo, não sentia dor alguma. Hashimoto-san estava assustado e me disse que durante a cerimônia inteira fiquei imóvel. Em resposta, eu lhe disse que não me lembrava de nada.
Todos apenas riram.
Explicando o inexplicável
Quem acompanhou toda a leitura até agora deve estar afirmando, talvez, que hoje me sinto aliviado pelo Uta Matsuri ter acabado, pelos treinos terem se encerrado, depois de uma narrativa ilustrada com muitos momentos de dor.
Porém, mesmo com todas essas dores que senti nos preparativos para o Uta Matsuri daqui da Sede Central da Oomoto, por todas as refeições que praticamente engolíamos para chegarmos no horário do treino, pelos 30 dias que passamos em retiro espiritual, hoje sinto falta dos treinos de Roei.
Sinto falta daquela energia, da dedicação e empenho de todos, da união, das risadas nos finais dos treinos, da concentração que sempre fazíamos ao ar livre antes e depois de começarmos a treinar.
Hoje, toda vez que passo pelo lugar onde treinávamos todos os dias, é impossível não ter boas recordações, é impossível não relembrar de algo, é impossível permanecer indiferente diante daquele local tão comum por onde passo praticamente todas as manhãs.
Não sei, mas é involuntário: passo por lá, fecho os olhos e simplesmente sorrio. Talvez o que eu sinta esteja misturado com todas as experiências que estou tendo oportunidade de viver aqui no Japão. Sinto algo que ainda não sei descrever.
É como ouvir as músicas de cafés-da-manhã dos cursos infanto-juvenis da Oomoto do Brasil. É como se sentir num começo de um novo amor, de uma nova descoberta, de ouvir uma boa notícia. É como se sentir completo, sem medos, preocupações, ou sofrimentos.
É como se sentir como um dos membros do Uta Matsuri.
Notas:
1. Literalmente tanka (短歌) significa “poema curto” (tan = curto, breve; e ka = poema ou música). É formado por 31 sílabas (versos de 5 - 7 - 5 - 7 - 7 sílabas respectivamente).
2. Nō (能) é uma forma clássica de teatro profissional japonês, que combina canto, pantomima, música e poesia. Interpretado apenas por atores que passam sua arte pela tradição familiar. É uma das formas mais importantes do drama musical clássico japonês, executado desde o século 14.
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